Você com certeza já ouviu falar da Lei Maria da Penha, principal referência do País para enfrentamento e prevenção da violência contra a mulher. Mas talvez não tenha acompanhado que na terça-feira, dia 14 de maio, o governo sancionou uma mudança no texto da lei, permitindo que, em caso de risco iminente, delegados e policiais possam tirar o agressor do convívio da vítima. A medida é válida para municípios que não são sede de comarca, onde os delegados, até então, precisavam recorrer ao juiz responsável pela área para obter a liberação da medida protetiva. O objetivo da alteração é tornar mais rápida a aplicação de medidas protetivas de urgência para mulheres e seus filhos.
A questão, no entanto, vinha causando polêmica desde quando ainda estava sendo discutida no Congresso. Alguns especialistas acreditam que a mudança pode tornar mais ágil a concessão da medida protetiva. Há também quem diga que a possibilidade é valida, mas que seria preciso definir melhor os procedimentos a serem tomados pelos policiais. Outros grupos, como a Rede Feminista de Juristas, afirmam que a medida é ilegal e pode ser contestada.
Para a juíza Teresa Cristina Cabral Santana, integrante da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário do Estado de São Paulo (Comesp), mais do que tornar possível que diferentes autoridades analisem a protetiva, é importante que haja o acolhimento, a prevenção e a proteção da vítima de violência. Segundo ela, a Lei Maria da Penha foi criada como um sistema que deve funcionar de maneira integrada, para não haver risco de quebra na rede de atendimento e de proteção à mulher.
Na opinião de Teresa Cristina, seria preciso primeiro qualificar os profissionais que atuam no atendimento à mulher no sistema de Justiça. “Se a autoridade não quiser registrar a ocorrência, ela não vai registrar. Se ela não conseguir orientar a vítima para a concessão das medidas, ela vai continuar deixando de orientar.”
Discussões à parte, há muitos detalhes da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio que ainda são desconhecidos pela maioria da população. Reunimos aqui as dúvidas mais frequentes sobre as duas principais bases legais do enfrentamento à violência contra a mulher no Brasil.
1. A Lei Maria da Penha fala apenas para violência física?
Falso
Muita gente não sabe, mas a violência física é apenas uma das cinco violências previstas na Lei Maria da Penha. Saiba quais são:
Violência psicológica
Muitas vezes menosprezada, se manifesta em controle de comportamento por ameaça, manipulação, isolamento, insulto e chantagem. “Diminui a autoestima da mulher e o autoconhecimento dela”, explica a promotora de Justiça Maria Gabriela Prado Manssur, integrante do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica. Nesse casos, diz ela, é comum que a mulher fique em dúvida sobre a gravidade da situação e acabe postergando o pedido de ajuda. Só que é muito importante identificar a violência psicológica, ressalta a advogada Maria Laura Canineu, diretora do escritório brasileiro da Human Rights Watch. Segundo ela, há risco de o agressor partir na sequência para violência física, ameaça de morte ou tentativa de homicídio.
Violência sexual
Entendida como qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.
Violência patrimonial
Retenção, subtração, destruição de instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos.
Violência moral
Calúnia, difamação ou injúria.
2. A Lei Maria da Penha pode ser aplicada apenas contra homens, sejam cônjuges ou namorados?
Falso
Segundo Marina Ganzarolli, uma das co-fundadoras da Rede Feminista de Juristas, é muito comum que as pessoas acreditem que a lei é aplicada apenas contra homens, o que é uma percepção bastante distorcida. Na realidade, a lei beneficia mulheres, independentemente da orientação sexual. Em outras palavras, em um relacionamento lésbico, a mulher agredida pode acionar a lei contra sua cônjuge/namorada. “Não é toda violência contra a mulher que é contemplada na lei. Ela reduz para situações de violência doméstica e familiar”, afirma Ganzarolli.
Na lei, existem três situações para sua aplicação, descritas no artigo V:
– A primeira tem como foco o aspecto íntimo das mulheres: “No âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas”.
– A segunda situação fala em relações consanguíneas: “No âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”.
– A terceira e última situação prevê que uma mulher pode acionar a lei “em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”.
3. A Lei do Feminicídio vale para mulheres trans?
É discutível
A Lei do Feminicídio fala de discriminação pelo sexo, e não pelo gênero. “Isso é um problema, pois uma lei não poderia deixar de incluir mulheres transexuais, também vítimas de discriminação de gênero”, explica a professora de Direito Penal e Processo Penal da FGV Maíra Zapater. Segundo ela, mesmo com o termo “sexo”, há margem para interpretações diferentes. “Soube de assassinatos de mulheres trans que foram disputados no Judiciário para entrar como feminicídio.”
A interpretação deve contemplar mulheres transsexuais e também travestis, segundo a juíza Teresa Cristina. Ela explica que, quando se fala em condição do sexo feminino, é preciso olhar para um fenômeno cultural e social que coloca mulheres numa condição, não só levando em conta o sexo biológico. “Para mim, é muito claro: condição de sexo feminino é gênero”, comenta.
4. Mulheres que registram Boletins de Ocorrência (BOs) e têm medidas protetivas morrem menos?
Verdadeiro
Muitas mulheres deixam de registrar os boletins por acharem que a situação de violência só vai piorar depois disso. No entanto, o estudo Raio-X do Feminicídio: é Possível Prevenir a Morte, feito a partir de dados do Ministério Público do Estado de São Paulo entre março de 2016 e 2017, concluiu justamente o contrário: romper com o silêncio e deferir medidas de proteção são as estratégias mais efetivas na prevenção da morte de mulheres. A pesquisa analisou 364 casos de feminicídio – entre tentativas e assassinatos. Só 12 dessas mulheres tinham medidas protetivas deferidas, o que representa 3% do total. Ainda segundo o estudo, 96% das 124 vítimas de feminicídio consumado nunca registraram Boletim de Ocorrência.
Pela mudança sancionada em 14 de maio, se houver risco iminente à vida ou à integridade física da mulher, o agressor deverá ser imediatamente afastado do lar ou do local de convívio. A medida caberá à autoridade judicial, ao delegado (quando o município não for sede de comarca) ou mesmo a um policial (na ausência do delegado, em município que não é sede de comarca). Além disso, não será concedida liberdade provisória ao preso se houver risco à integridade física da mulher ou à efetividade da medida protetiva de urgência.
5. O Brasil avançou na implementação de políticas para enfrentamento de violência e proteção da mulher que foram previstas na Lei Maria da Penha?
Depende
A Lei Maria da Penha é a principal referência do País em relação ao enfrentamento e à prevenção da violência contra a mulher, sendo reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a terceira melhor lei do mundo no combate à violência doméstica. No entanto, sua implementação integral ainda está pendente, aponta Maria Laura, advogada e diretora do escritório Brasil da Human Rights Watch. Ela avalia que há avanços, mas algumas questões precisam ser aperfeiçoadas, entre elas o estabelecimento da rede de proteção à mulher. “A lei não prevê só mecanismo de perseguição penal dos agressores. Ela prevê a necessidade de estabelecer uma rede de proteção.”
Em 2014, uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi instaurada para verificar e acompanhar a execução da Lei Maria da Penha e dos equipamentos que ela propôs. Os trabalhos resultaram em um relatório de mais de mil páginas, que indicou 13 propostas legislativas para aperfeiçoar a aplicação da lei. Entre elas, a Lei do Feminicídio.
A juíza Teresa Cristina indica que, além de dispositivos penais, o País necessita de mais políticas públicas que discutam educação, masculinidade tóxica e empoderamento da mulher.
6. A Lei Maria da Penha fala em mecanismos para educação e reabilitação do agressor?
Verdadeiro
“A Lei atende também ao agressor, no sentido que ele seja trabalhado para a desconstrução da postura de agressão que ele tem dentro dele”, afirma a própria Maria da Penha. No texto, está prevista a criação de centros de educação e de reabilitação para os que praticam a agressão. “É importante que eles sejam conscientizados e não reproduzam em uma outra relação agressividade de que vitimou a sua primeira mulher”, explica.
7. A Lei Maria da Penha prevê educação sobre violência nas escolas?
Verdadeiro
No artigo inciso IX, o texto prevê “destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher”.
8. A Lei do Feminicídio reduziu o número de mulheres mortas em razão do sexo?
É questionável
Existem diferentes dados sobre feminicídio no Brasil. Os levantamentos podem levar em consideração inquéritos instaurados, mortalidade de acordo com dados do Sistema Único de Saúde (SUS), boletins de ocorrência, denúncias e outras fontes. Porém, segundo Leila Posenato, técnica de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), nenhum levantamento vai ter uma estatística completa. “Então, ficamos tendo de montar um quebra-cabeça, pegar os dados do Sistema de Informações Mortalidade (SIM), que dão o panorama mais geral da violência, os óbitos classificados pela polícia, os processos do Judiciário.” Ela destaca que em todos os casos as estatísticas são alarmantes.
As estatísticas sobre feminicídio passaram a ser produzidas apenas recentemente, afirma a promotora de Justiça Silvia Chakian de Toledo Santos. “Temos as estatísticas do Mapa da Violência, o incremento das mortes de mulheres negras, mas é preciso avançar muito na busca desses dados, entender o contexto dessas mortes, de forma nacional.”
Em 2016, 929 mulheres foram assassinadas no Brasil. Em 2017, esse número teve um salto: ao todo, 1.133 mulheres morreram vítimas de feminicídio. Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que foi publicado em 2018 e é umas principais bases de dados sobre o assunto.
Para a professora Maíra Zapater (FGV), o problema de dados e da retratação do fenômeno a nível nacional está relacionado às interpretações da redação da lei e à falta de treinamento sobre a questão de gênero em diferentes instâncias do poder público. Além disso, a advogada e especialista em Direito Penal afirma que não há evidências de que a criminalização e o aumento de penas combatam determinada prática, no caso a morte de mulheres pela questão de gênero. “Quando a lei penal vai ser aplicada, o crime já aconteceu. A criminalização vem se mostrando um remédio ineficaz.”
A conceituação do feminicídio como fenômeno cultural e social é um dos aspectos mais importantes da lei para a juíza Teresa Cristina. “O nome é importante. Se olharmos para a evolução, desde março de 2015, percebe-se que a situação saiu de uma condição de invisibilidade.” A juíza destaca que a tipificação torna possível que haja um olhar diferenciado para o fenômeno, inclusive para o desenvolvimento de políticas públicas.
Colaborou Naiara Albuquerque