O debate sobre masculinidades é também um debate sobre responsabilização, costuma dizer o professor e pesquisador Caio César, durante as rodas de conversa do Memoh. Desenvolvido no Rio de Janeiro, o projeto reúne homens para refletir sobre seu comportamento em sociedade e sua contribuição para a equidade. “Estamos partindo de um lugar de privilégio de gênero e precisamos entender todas as dinâmicas que passam por nós”, explica.
O passo seguinte, na opinião dele, é mudar concepções sobre o que significa ser homem. “As pessoas têm vários conceitos: como ser forte, viril, másculo ou até violento. O debate sobre masculinidade tenta criar uma outra maneira de ser homem.”
Caio faz questão de falar na existência de masculinidades, uma vez que há diferenças entre ser um homem branco ou negro, assim como é distinta a vivência para homens heteressexuais ou LGBTs. “Enquanto o branco é o pai de família, o cara honesto ou príncipe encantado, outras masculinidades são consideradas masculinidades subalternas.”
Em entrevista ao Estado, o pesquisador falou sobre os diversos aspectos da masculinidade que afetam diariamente o comportamento de homens e, também, o cotidiano das mulheres. Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista:
Como você começou a pesquisar sobre masculinidade?
Foi em 2016, a partir da leitura do escritor e filósofo Franz Fanon (autor de livros como Pele Negra, Máscaras Brancas e Os Condenados da Terra, por exemplo). No fim de 2017, eu conheci, no Rio de Janeiro, o projeto Memoh. Tudo isso começou quando passei a acompanhar o debate que estava rolando na internet sobre a solidão da mulher negra e qual o papel do homem nisso tudo. Depois, com o projeto (Memoh), passei a me inteirar do assunto de uma maneira mais geral. Hoje em dia, falo muito de masculinidade negra, mas também trato da questão para todos os homens.
Qual o papel do homem na discussão de gênero? E o que significa ser homem na sociedade que vivemos?
O papel é pensar como se constrói a masculinidade, o que faz a gente agir, pensar e lidar com a vida da maneira que a gente lida. A partir desse entendimento, é necessário propor mudanças práticas na forma de lidar consigo, com o outro e com a sociedade. As pessoas têm vários conceitos sobre o que é ser homem: como ser forte, viril, másculo ou até violento. O debate sobre masculinidade tenta mudar concepções para tentar criar uma outra maneira de ser homem.
Como a infância e a adolescência podem influenciar na construção do homem?
São momentos muito importantes para essa construção, principalmente dentro de casa e na escola. No Memoh, os homens costumam trazer as questões ligadas a essas épocas para discussão. Eles sentem necessidade de mudar. Seja porque o cara lida com muitas mulheres feministas, sempre levando pancada. Ou porque ele não se sente mais à vontade em certos grupos de amigos, que querem continuar com os assuntos de sempre.
Quais assuntos de sempre?
Futebol, cerveja, bar e mulheres. Os homens não costumam falar sobre medo, sentimentos e angústias. O mais importante é o cara perceber que o processo que ele está passando também é realidade para outros. Apenas entre homens, eles se sentem muito mais à vontade para expor seus medos e suas angústias do que se estivessem em um espaço com mulheres. Gostamos de enfatizar que falar sobre gênero não é só falar sobre mulheres, assim como falar sobre racismo ou raça não é só falar sobre negros. Além disso, entendemos que as mulheres não têm de ficar nos ensinando sobre esse tema, nós podemos fazer isso entre nós.
Quais questões de masculinidade são diferentes para homens negros e brancos?
Entendemos que o homem branco cisgênero, heterossexual e de classe média alta representa a masculinidade hegemônica, um modelo a ser seguido (pela sociedade). Nesse sentido, os estereótipos que caem sobre ele nem sempre são ruins. Enquanto o branco é o pai de família, o cara honesto ou príncipe encantado, outras masculinidades são consideradas masculinidades subalternas. O nosso estereótipo é basicamente ruim. Para o negro, há uma hipersexualização e uma ideia de homem violento, que não existe para o branco. Esse homem branco é também muito mais aceito no debate de masculinidade, já que é visto como bom e capaz de mudar, diferentemente do negro. Sem contar o fato de que a masculinidade para os negros é muito mais forte. Em outras palavras, se o homem precisa ser macho, o negro precisa ser muito mais macho por ser visto como viril e ‘negão’.
Nessas rodas, vocês abordam a questão do privilégio de gênero e em como reconhecer esses privilégios em nossa sociedade?
Em todos os temas, partimos sobre o que podemos fazer para mudar. Sempre gosto de falar que o debate sobre masculinidade é um debate sobre responsabilização. Primeiramente, estamos partindo de um lugar de privilégio de gênero e precisamos entender todas as dinâmicas que passam por nós. Não existe uma dificuldade de entendimento por parte dos homens no Memoh porque aqueles que chegam até nós já vêm dispostos. É muito raro acontecer de um machista clássico ir a uma das nossas rodas e nós estamos pensando em como trazer esse homem para perto.
Mulheres heterossexuais reclamam que alguns homens adotam discurso politicamente correto, mas têm atitudes machistas. Os esquerdomachos, como foram apelidados. Vocês refletem sobre essa questão?
Esse tema é comum em nossas discussões e sempre falamos nos encontros que estar no Memoh não traz um selo de qualidade. Você, homem, não é melhor só por estar ali pensando e falando sobre isso (masculinidade). Outro ponto interessante é que tudo o que a gente fala sobre machismo é sempre partindo do que outras mulheres já apontaram como machismo.
Como vocês abordam a questão da masculinidade frágil?
Essa temática é bastante discutida. Não só nos grupos, mas principalmente fora deles. Um dos pontos principais do Memoh é que ali é um espaço onde os homens podem falar qualquer coisa sem serem considerados menos homens. Ou seja, mesmo que tenham uma trava inicial, eles se mostram mais tranquilos após algum tempo. Já ouvimos de homens que falar de masculinidade é ‘coisa de bicha’ e de ‘homem frouxo’, mas nas rodas eles são os primeiros a chorar e a pedir ajuda de fato. Nós meio que juntamos todos os caras em uma mesma roda e os homens ficam muito felizes. Felizes por ver que existem outros que falam e que sentem as mesmas coisas.
De acordo com estatísticas, os homens cometem mais suicídio do que as mulheres. Por que você acha que isso acontece?
Realmente, essa é uma questão que envolve a saúde do homem como um todo. A gente tem muita trava para pedir ajuda em tudo, e a questão da ajuda na saúde mental já é vista de maneira geral pela sociedade como ‘frescura’. Existem várias travas sociais que impedem que os homens procurem por ajuda psicológica por acreditarem que eles serão menos homens.
Como você enxerga a formação de rodas de conversas entre homens agressores da Lei Maria da Penha?
Acho que esses grupos são fundamentais. É um debate muito difícil porque, de uma maneira geral, ninguém quer lidar com esses homens. Porém, o cara que bateu em uma mulher vai continuar por aí e eventualmente volta a conviver com as pessoas. Por isso, alguma coisa precisa ser feita para que pare de bater em mulheres.
Por que você acha que esse tipo de medida ajuda a quebrar o ciclo da violência?
Porque a gente começa a entender os porquês. Se entendemos e tratamos esses porquês e a história desse homem, conseguimos mudar o ato em si. É importante entender o que o homem fez, o que ele estava sentindo e por que ele bateu em uma mulher. É importante entender todos esses motivos para que ele nunca mais volte a fazer isso.