Direita e esquerda dificilmente concordam. Especialmente quando o assunto é aborto. No Uruguai, no entanto, os grupos historicamente separados pela ideologia apoiam a mesma causa: mudanças na lei de interrupção voluntária da gravidez. Por motivos diferentes, a despenalização do aborto, como ficou popularmente conhecida a medida, não tem agradado nem a feministas nem a integrantes de grupos pró-vida.
Aprovada no fim de 2012, a lei está sendo cada vez mais usada pelas mulheres do país vizinho, alcance que aumenta na mesma proporção das polêmicas que envolvem seus artigos. Para os críticos dos dois lados, com itens que citam progenitores, tribunais especializados e objeção de consciência por parte dos médicos, a lei de interrupção voluntária incentiva a busca por abortos arriscados, fora do sistema de saúde.
“Ter de se submeter a um tribunal especializado está gerando uma situação de vergonha, desestimulando as mulheres a irem pelo caminho legal”, afirma o deputado pró-vida Pablo Abdala, no Partido Nacional. Para diretora da ONG Mujer y Salud en Uruguay (MYSU), Lilián Abracynskas, a razão para o aborto clandestino seguir existindo mesmo com a despenalização da prática também está na composição da norma. “É uma lei que confunde. Muita gente não sabe como é o processo, acha que porque foi despenalizado pode fazer de qualquer maneira”, afirma a feminista.
Os dois se referem à exigência de que mulheres que buscam o serviço público para abortar têm de cumprir uma agenda que inclui períodos de reflexão e participação em tribunais, com equipes de ginecologistas, psicólogos e assistentes sociais. Esse ponto é o que provoca a maior parte das discussões.
Lilián acredita que o processo determinado pela lei é ineficaz e a legislação foi criada para fazer a mulher rever a prática do aborto. “A (passagem pela) equipe especializada deveria ser optativa. É muito cara para o Estado e apenas 6% das mulheres desistem da interrupção após procurar um médico.”
É muito respeitável que uma mulher não queira ser mãe, mas isso não implica interromper a vida
— Deputado Pablo Abdala
Do outro lado da bancada, Pablo — deputado pró-vida que convocou um referendo, sem sucesso, em 2013 para consultar eleitores sobre a despenalização — também recusa a regra da reunião com profissionais interdisciplinares da forma como é aplicada atualmente. “Comparecer ante um tribunal não é uma solução satisfatória. A mulher deveria receber mais do que um assessoramento para abortar. Deveria ser com o propósito de salvar uma vida”, aponta. Para ele, o sistema de adoção deveria ser melhorado para contemplar filhos de mães que não desejam ficar com o bebê. “É muito respeitável que uma mulher não queira ser mãe, mas isso não implica interromper a vida.”
Suplente do Frente Amplio, coalizão eleitoral de esquerda no Uruguai, Romina Napiloti realizou um aborto em 2013, com base na lei aprovada. “Acredito que a única coisa que o processo faz é colocar em risco as mulheres, porque abre a possibilidade de o mercado clandestino seguir existindo”, analisa Romina, que passou dois meses envolvida em seu aborto voluntário.
“Hoje, fazem a mulher gastar tempo e dinheiro na interrupção, mesmo as que já chegam decididas. Não tanto quanto os US$ 800 (cerca de R$ 3 mil), preço de um aborto clandestino. É mais acessível, mas ainda há o desgaste com deslocamentos para reuniões e todas as filas.” Mãe de gêmeos, ativista e co-fundadora do grupo Mujeres en el Horno, que ajuda mulheres que passaram por abortos clandestinos, Romina afirma que os artigos aprovados fazem da despenalização uma burocracia.
De acordo com a Lei 18.987 da Constituição do Uruguai, mulheres com até 12 semanas de gravidez são autorizadas a realizar o aborto, exceto em casos de estupro, quando o limite é de 14 semanas. Com 15 artigos, o texto só obteve maioria dos votos na Câmara após negociações com parlamentares da bancada conservadora. Do contrário, teria sido recusado como ocorreu em todas as outras tentativas de aprovar medida semelhante ao longo de mais de 20 anos.
“Não é uma lei que legaliza o aborto. É uma lei que suspende a penalização quando se cumpre circunstâncias, prazos e requisitos”, afirma o redator do projeto de lei aprovado, Ivan Posada. Deputado do Partido Independiente, ele se diz contra a interrupção da gravidez. “Apesar da opinião pessoal, devemos adotar como legisladores uma posição no sentido de preservar o bem público e o que é melhor para a sociedade.”
Médicos que se recusam a fazer o aborto
Segundo os dados do Ministério da Saúde Pública do Uruguai, de 2013 a 2017, 44 mil abortos foram realizados com base na lei de interrupção voluntária. O número surpreendeu principalmente a bancada conservadora, que acreditava haver cerca de 30 mil abortos clandestinos por ano no país. Além disso, 58,4% dos processos foram realizados na capital, Montevidéu, enquanto 41,6% ocorreram no interior, onde, de acordo com todas as partes, também há problemas ocasionados pelo texto da lei.
No artigo 11 da despenalização, batizado de “objeção de consciência”, ginecologistas aparecem como uma figura que pode se recusar a realizar os abortos, sem que sofra nenhuma sanção, por conta de sua crença. Segundo a feminista Lilián, esse trecho, aliado a uma ala conservadora dos profissionais de saúde, tem deixado algumas cidades uruguaias sem médicos para atender os processos de aborto.
“Diferentemente da capital, nem todas as instituições de saúde das zonas rurais ou das pequenas capitais têm médicos disponíveis. Quem vive onde há 100% de objetores precisa pagar uma viagem para conseguir a medicação abortiva”, afirma a diretora do MYSU. Segundo levantamento feito pela ONG, 52% dos ginecologistas da região metropolitana de Montevidéu expressaram objeção, enquanto Castillos, cidade do interior próxima à fronteira com o Brasil, tem 100% dos profissionais registrados como contrários à interrupção.
“O Uruguai é um país com pouca prática religiosa, então não dava para imaginar essa concentração de religiosidade em profissionais de ginecologia”, diz Lilián. Para ela, a solução para o problema seria retirar dos ginecologistas a exclusividade na prescrição do misoprostol, medicamento usado em 98% dos abortos. “A crença (dos profissionais de saúde) não pode impactar no acesso de outras pessoas aos seus próprios direitos.”
Redator do projeto, Ivan também aponta que não esperava tantas objeções na área da saúde, parte essencial para a interrupção voluntária da gravidez. “É um aspecto negativo. Com especial influência da Igreja Católica, médicos se posicionaram contra (o procedimento e a despenalização), o que mostrou uma dificuldade de aplicação da lei”, analisa o deputado. Ele ressalta que, apesar da posição dos profissionais, as instituições de saúde têm de estar prontas para atender à lei. “Nessas situações, a assistência médica pública ou privada precisa estar preparada com médicos que possam cumprir a norma.”
Para Romina, que conta ter passado pelo processo de aborto de forma fácil por já conhecer muitos profissionais da área, o que aconteceu no artigo da objeção foi um erro de redação imprevisto. “Ninguém imaginou que haveria boicote”, acredita a ativista. “Há ainda o risco de se deparar com um psicólogo, uma enfermeira ou alguém do administrativo que vai te maltratar.”
O homem dá opinião antes da decisão final
Outro ponto de discussão da lei é o papel do progenitor no processo de interrupção da gravidez. O artigo 4 indica que o pai pode ser entrevistado desde que haja consentimento da mulher. Grupos pró-vida defendem que a opinião do homem é essencial e deve ser levada em conta antes da aprovação do aborto pelo tribunal especializado. “Na lei que se votou o homem é excluído. A intervenção do pai fica condicionada à vontade da mulher e não concordamos com isso”, afirma Pablo. “Não é uma visão machista, patriarcal ou porque estamos contra o direito da mulher. É uma visão racional”, argumenta o deputado pró-vida.
Para a diretora do MYSU, entretanto, a figura masculina não deve estar incluída na lei, nem mesmo como está no artigo 4. “Como alguém vai autorizar algo que não vai ser sobre o seu corpo?”, indaga Lilián. “Esse artigo é resultado de uma negociação parlamentar, já que alguns queriam que houvesse autorização prévia do homem.”
É uma mulher adulta que está tomando a decisão e o homem não tem que dar um ‘pio’
— Romina Napiloti
Apesar do apoio do progenitor na interrupção, Romina conta que se separou do marido logo após realizar o aborto e também acredita que o homem não deve interferir. “O processo é um momento difícil no sentido geral, é algo muito exigente, que faz com que a gente revise muita coisa, até a maternidade e o parceiro. É uma mulher adulta que está tomando a decisão e o homem não tem que dar um ‘pio’.”
‘Ter uma lei não é algo mágico’
Apesar dos problemas apontados tanto pelos grupos feministas quanto pelos pró-vida, o redator do projeto acredita que a lei tem se mostrado conveniente por impedir que algumas mulheres realizem o aborto. “Apesar do conflito de direitos, a aplicação da lei está fazendo com que 6% das mulheres desistam de praticar o aborto e isso para mim já é muito positivo”, analisa Ivan.
Para Lilián, a lei precisa ser elogiada por tirar em torno de 40 mil mulheres em cinco anos da ilegalidade, sem correr riscos. No entanto, ainda é preciso trabalhar nas mudanças dos artigos e da sociedade como um todo. “Do ponto de vista feminista, ela é altamente questionável, mas foi a lei que se conseguiu. Ter uma lei não é algo mágico, que em si só agrega tudo. Há ainda todo o trabalho de mudança de sistema, de saúde, da educação”, ressalta a ativista.
Já Pablo crê que o ideal seria mudar a forma da despenalização, que hoje estaria legalizando o aborto para que qualquer mulher realize o processo. “É necessário despenalizar, mas acredito que, como está, é uma solução ruim”, afirma o deputado, lembrando da dificuldade com a agenda política para o próximo ano, já que o Uruguai escolhe seu novo presidente em outubro de 2019. “O que temos hoje foi aprovado, foi validado pelos cidadãos. Para introduzir as mudanças, o cenário ainda terá de mudar muito”, acredita o parlamentar do Partido Nacional. “Temos de ser cuidadosos porque não podemos ir contra a vontade popular que se estabeleceu até agora.”
Para quem passou pelo processo, Romina analisa que é um privilégio ter uma lei que permite que todas as mulheres possam ter o mesmo direito de abortar, com a mesma segurança e profissionais habilitados. Mas a ativista reforça: “Como a lei está implementada, está gerando zonas cinzas, e zonas cinzas em uma prática historicamente proibida é um problema muito grave”.