Consenso só no que já é consenso. Em causas ligadas ao universo feminino, as próximas ocupantes da Câmara dos Deputados concordam apenas a respeito de leis já existentes: a de igualdade salarial entre homens e mulheres e as de combate à violência contra elas. Questões como a descriminalização do aborto e a discussão de gênero nas escolas dividem a futura bancada feminina, como aponta levantamento realizado pelo Estado com as eleitas para o próximo mandato.
O Estado ouviu 48 das 77 parlamentares escolhidas para 2019, que compõem a maior bancada de mulheres da história da Câmara dos Deputados. Do total, 7 não quiseram responder ao questionário, 21 não retornaram os contatos e somente uma, Angela Amin (PP-SC), não foi localizada pela reportagem. As oito perguntas, elaboradas com auxílio de pesquisadoras especializadas em política e gênero, deviam ser respondidas somente com “sim” ou “não”, exceção feita à questão sobre o perfil ideológico das futuras deputadas.
De todos os partidos consultados, o que teve mais baixa adesão à pesquisa foi o Partido Social Liberal (PSL). Apesar das reiteradas tentativas de contato, a deputada Soraya Manato, eleita pelo Espírito Santo, foi a única que respondeu ao questionário da reportagem, entre as nove eleitas pelo PSL.
A única pauta feminina em que houve consenso total entre as futuras deputadas ouvidas pela reportagem foi a igualdade salarial. As 48 se disseram favoráveis à equiparação de salário entre homens e mulheres que desempenham a mesma função. Em tese, o artigo 461 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sancionada em 1943 pelo então presidente Getúlio Vargas, já determina isso. Diz o texto: “Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, no mesmo estabelecimento empresarial, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo”.
Outra questão praticamente unânime — 47 votaram “sim” — foi a existência de legislação para combater a violência contra a mulher, como a Lei Maria da Penha (2006) e a Lei do Feminicídio (2015). Entre as futuras deputadas ouvidas, respondeu de forma negativa apenas Bia Kicis (PRP-DF), que vai ocupar pela primeira vez uma cadeira no Legislativo federal. “Não ajuda em nada. Quando nós combatermos mais seriamente a impunidade, as mulheres estarão a salvo”, justificou a deputada.
De todo o questionário, a descriminalização do aborto foi a pauta que obteve menor aprovação entre as deputadas: apenas 19 disseram ser favoráveis. “É apenas entender que a interrupção da gestação não pode ser tratada como caso de polícia, mas sim como caso de saúde pública”, disse a deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ).
Comumente associado ao feminismo, o tema dividiu até mesmo as que disseram apoiar o movimento — do total de 26 que se declaram feministas, 2 não quiseram responder essa questão e outras 7 disseram ser contra a mudança na legislação. É o caso da estreante na política Tabata Amaral (PDT-SP), que encara o assunto como um “dilema ético”. “Tenho consciência de que, com o aborto proibido, morrem principalmente as mulheres mais pobres. Por outro lado, tenho dificuldade em aprovar uma legislação que legitima a violência contra uma vida.”
Quatro parlamentares não quiseram se posicionar sobre a descriminalização do aborto. Para a deputada federal eleita Sâmia Bomfim (PSOL-SP), a suposta neutralidade adotada por suas colegas pode ser considerada oportunista. “Negar-se a tratar de determinados temas para não perder votos é um erro e faz parte da velha política.”
A pesquisadora Beatriz Sanchez, do Grupo de Estudos de Gênero e Política da Universidade de São Paulo, acredita que o principal motivo para a rejeição à descriminalização do aborto entre as próprias deputadas feministas é a influência da religião. “O debate ainda é muito pautado pelo viés religioso. Isso faz com que elas se posicionem contra esse tema, que, de forma geral, unifica as diferentes vertentes dos movimentos feministas”, explica a pesquisadora.
Das 19 deputadas favoráveis à descriminalização do aborto ouvidas pelo Estado, 17 se identificaram no campo ideológico da esquerda ou da centro-esquerda. Apenas as deputadas Dra. Marina (PTC-PI) e Tereza Cristina (DEM-MS) se declararam de centro-direita — a segunda, no entanto, deve se licenciar do cargo na Câmara para assumir o Ministério da Agricultura do governo de Jair Bolsonaro (PSL). Dra. Marina disse que, apesar de controverso, trata-se de um assunto urgente de saúde pública. “Sou favorável à ampliação dos casos legais de aborto, como em circunstâncias em que o feto não tenha uma plena viabilidade ou que tenha alguma anomalia que vá impossibilitar sua vida com independência”, pondera a deputada eleita.
A discussão de gênero nas escolas dividiu a bancada feminina ouvida pela reportagem. Entre as 24 que se disseram favoráveis a abordar o tema em colégios, apenas uma deputada, Professora Dorinha (DEM-TO), declarou-se de centro-direita. “Eu entendo que não é um tema que deva ser tabu. A escola não pode ser um espaço onde se proíba o debate”, disse a deputada.
Tal questão foi amplamente debatida durante a campanha eleitoral e uma das das principais bandeiras de campanha presidente eleito, o movimento Escola Sem Partido, prega o fim desse tipo de debate no ambiente escolar.
Para a pesquisadora Beatriz, a abstenção da maior parte da futura bancada do PSL atenua a rejeição às pautas mais polêmicas do levantamento, como a descriminalização do aborto e a discussão de gênero nas escolas. “Essas parlamentares vão representar uma resistência a qualquer tipo de proposta mais progressista.” Ela espera para 2019 uma Câmara dos Deputados com perfil ainda mais conservador do que o mostrado pela pesquisa, mesmo entre as mulheres.
A opinião é contraposta pela cientista política da Universidade de Brasília (UnB) Flávia Biroli. Para ela, é impossível prever o comportamento das políticas eleitas pelo partido do futuro presidente. “Não há indícios de que a bancada do PSL vai funcionar como bancada partidária, mesmo que seja possível identificar o partido como de direita”, afirma a pesquisadora.
Ainda que algumas pautas possam sugerir consenso, a polarização herdada do período eleitoral pode acabar dividindo a bancada feminina. A única deputada do partido de Bolsonaro a responder aos questionamentos da reportagem, Soraya Manato (PSL-ES), defende unidade entre mulheres, com ressalvas. “Em relação a questões femininas, acho que nós vamos votar em comum acordo. Mas, para determinadas coisas, existem limites”, diz.
No campo ideológico oposto ao dela, Sâmia Bomfim acredita que a atuação das futuras parlamentares tem de ser mais assertiva em relação a temas do universo feminino. “Não basta se eleger. É preciso estar em contato com as pautas das mulheres.”
O aumento da licença-paternidade teve larga margem de apoio entre as entrevistadas. Das 48 futuras deputadas ouvidas pela reportagem, 35 se disseram favoráveis à medida. “Isso beneficia as mulheres com a diminuição da carga de trabalho. O apoio do companheiro é indispensável”, disse a deputada Alice Portugal (PCdoB-BA). São contrárias a essa ampliação nove das deputadas eleitas que responderam ao questionário. Magda Mofatto (PR-GO) foi uma das que responderam de forma negativa. “A licença paternidade prolongada não é tão importante, e sim a presença paterna durante a vida inteira de uma criança.”
Aprovação ainda maior teve a reserva de cadeiras para mulheres entre os parlamentares: 36 das 48 parlamentares ouvidas se disseram a favor. “É preciso haver paridade. Nós, mulheres, somos a maioria da população”, disse a deputada Benedita da Silva (PT-RJ). Entre as 11 que votaram “não” está Geovania de Sá (PSDB-SC). “As mulheres não devem ingressar na carreira política devido à exigência do preenchimento de cotas.”
Das 77 deputadas eleitas, apenas 27 ocupavam cadeiras na Câmara dos Deputados na última legislatura. Para a cientista política da UnB, esse elemento deve ser considerado ao analisar a nova configuração da bancada feminina. Ela acredita que possa surgir uma maior coesão entre essas mulheres — mesmo entre as de partidos opostos — no decorrer da atividade legislativa. “Pode ser que as deputadas passem a se posicionar com maior consonância à agenda das mulheres, conforme elas comecem a atuar como parlamentares, sobretudo pensando naquelas que foram eleitas pela primeira vez”, diz Flávia.
O diretor da Dominium Consultoria, Leandro Gabiati, tem opinião oposta. Para ele, os próximos quatro anos do Congresso serão regidos pela polarização entre esquerda e direita, o que vai dificultar o diálogo dentro da bancada feminina. “Certamente você terá divisão dentro desse grupo, não união”, acredita o também cientista político da UnB. Leandro pondera que, embora a bancada feminina seja maior, o Congresso como um todo está mais conservador. Portanto, segundo ele, a chance de serem pautados os temas abordados no questionário é baixa. “Todo tipo de lei que é aprovada tem a ver com o momento político, seja em questões econômicas, seja em outro tipo de pauta.”
Deputadas que participaram do levantamento e suas respostas
Deputadas que não quiseram responder ao questionário
Adriana Ventura (Novo-SP)
Alê Silva (PSL-MG)
Bruna Furlan (PSDB-SP)
Jéssica Sales (MDB-AC)
Maria do Rosário (PT-RS)
Mariana Carvalho (PSDB-RO)
Soraya Santos (PR-RJ)
Deputadas que não retornaram os contatos
Aline Gurgel (PRB-AP)
Aline Sleutjes (PSL-PR)
Carla Zambelli (PSL-SP)
Carmen Zanotto (PPS-SC)
Caroline de Toni (PSL-SC)
Celina Leão (PP-DF)
Chris Tonietto (PSL-RJ)
Christiane Yared (PR-PR)
Daniela do Waguinho (MDB-RJ)
Dra. Vanda Milani (SD-AC)
Dulce Miranda (MDB-TO)
Elcione (MDB-PA)
Flavia Arruda (PR-DF)
Greyce Elias (AVANTE-MG)
Joenia Wapichana (REDE-RR)
Joice Hasselmann (PSL-SP)
Leandre (PV-PR)
Major Fabiana (PSL-RJ)
Maria Rosas (PRB-SP)
Professora Dayane Pimentel (PSL-BA)
Rosangela Gomes (PRB-RJ)