Todo poder ao batom. Contrariando a crença de que não se unem, as mulheres mostraram a força da coesão feminina na Constituinte de 1988. Representantes de partidos de diferentes vertentes, da direita à esquerda, as deputadas federais votaram em bloco e deram o tom da Constituição Cidadã. O texto final, promulgado em 8 de outubro daquele ano, consolidou o processo de democratização do País. As parlamentares eram apenas 26 entre 559 políticos no total, mas com grande capacidade de persuasão.
“Éramos poucas, mas convencemos a maioria da Câmara, que era de homens, a votar conosco. Votamos até questões que diziam que não eram matéria da Constituição, em relação aos trabalhadores”, lembra Benedita da Silva, deputada constituinte e atual deputada federal Partido dos Trabalhadores (PT). “O Brasil se encontrou com o Brasil. Tínhamos todos os segmentos, de todas as classes sociais e etnias.”
Direito de ação de movimentos sociais organizados na defesa de seus interesses; educação universal pública e gratuita em todos os níveis; obrigação estatal na educação especial para portadores de deficiências físicas ou mentais. Liberdade de pensamento e expressão; soberania na negociação da dívida externa; livre associação profissional e sindical; direito de greve a todas as categorias profissionais. Política responsável de proteção ao meio ambiente; política de manutenção e respeito à integridade das populações indígenas.
Todos esses direitos assegurados pela Constituição de 1988 estavam presentes nas reivindicações da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, documento entregue por mulheres civis ao presidente da Assembleia Nacional Constituinte, o deputado Ulysses Guimarães, em agosto de 1986. Isso sem contar as 20 reivindicações do documento referentes especificamente aos direitos das mulheres, que também foram atendidas.
Segundo os especialistas ouvidos pelo Estado, o caráter libertário e social da Constituição de 1988 é fruto de seu momento histórico: após 24 anos de governos militares, o texto constitucional é o primeiro do País que considera o indivíduo à frente das instituições governamentais. “Se pegarmos as oito constituições que o Brasil já teve, a de 1988 de fato tem princípios e normas mais abrangentes do ponto de vista dos direitos”, diz a professora Edwiges Corrêa, organizadora do livro 30 Anos da Constituição Federal Brasileira: Conquistas e Desafios para a Construção de um Estado Democrático de Direito .
Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres
Esse perfil social, que confere e amplia direitos a grupos historicamente marginalizados, é resultado direto de uma participação efetiva e organizada das mulheres. A Assembleia Nacional Constituinte contou com 26 deputadas federais, dos mais diversos partidos, regiões do País e formações políticas. Elas se posicionaram em bloco para propor emendas e votar pela ampliação dos direitos femininos. Tudo isso aliado a movimentos de mulheres da sociedade civil do Brasil inteiro, coordenados pelo Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM). Essa mobilização começou a ganhar corpo ainda antes da convocação da Assembleia que elaboraria a nova Constituição.
Em 1985, o então presidente da República, José Sarney, criou o CNDM, órgão do Executivo vinculado ao Ministério da Justiça. Essa havia sido uma reivindicação de grupos organizados de mulheres ao presidente seguinte, Tancredo Neves, escolhido pelo colégio eleitoral, que morreu antes de assumir o cargo. Sarney, que era o vice-presidente, assumiu a Presidência e cumpriu a promessa feita por Tancredo, criando o conselho. A partir de uma série de encontros regionais realizados em todo o País, esse conselho, junto com movimentos feministas organizados, reuniu questões consideradas imprescindíveis pelas mulheres brasileiras.
Segundo a socióloga Jacqueline Pitanguy, presidente do CNDM na época da Constituinte, o órgão teve um papel fundamental ao coordenar a atuação das mulheres da sociedade civil e acompanhar as deputadas durante a Assembleia Nacional Constituinte, para garantir que os direitos das mulheres estariam no texto. “Primeiro definindo quais eram esses direitos a partir da própria sociedade civil, das mulheres que encaminharam ao conselho suas demandas. Com isso, foi redigido um documento histórico que é a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, entregue por mim ao deputado Ulysses Guimarães”, explica Jacqueline.
Depois da campanha Constituinte sem Mulher fica pela Metade, a carta foi apresentada em um encontro nacional em 26 de agosto de 1986, com cerca de 2 mil mulheres, e encaminhada aos constituintes e à sociedade civil. Nela, estavam os princípios gerais que, na visão feminina, deveriam reger o texto constitucional e reivindicações sobre saúde, trabalho, família, educação, cultura e violência, além de questões nacionais e internacionais.
O movimento nacional também teve o objetivo de incentivar a participação das mulheres na política, já que as eleições de 1986 definiriam os parlamentares que escreveriam o texto de 1988. “Como resultado concreto, a representação feminina no Congresso Constituinte foi mais que triplicada, embora permanecesse ainda minoritária”, afirma Maria Helena Versiani, historiadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora de um estudo sobre o exercício da cidadania no processo Constituinte. Foram eleitas 26 deputadas federais. Na legislatura anterior, eram 8. Para o Senado, apenas homens foram eleitos.
Atuação marcante
Durante a Constituinte, a participação de mulheres da sociedade civil foi ativa no cotidiano do Congresso. Elas conversavam com líderes partidários pelos corredores e marcavam presença nas votações das emendas relacionadas a causas femininas nas subcomissões, nas comissões e no plenário. Essa atuação marcante e organizada ficou conhecida como Lobby do Batom.
“Foi uma ideia da assessoria do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres em transformar a ironia inicial dos deputados em algo a favor delas. Elaboraram um panfleto sobre a carta com a expressão ‘Lobby do Batom’ e saíram distribuindo no Congresso e fora dele”, lembra Ana Maria Rattes, deputada constituinte pelo PMDB. “A expressão acabou por ser reapropriada pelas organizações de mulheres e usada como estratégia para mobilização da mídia”, conclui Maria Helena, da UFRJ.
Para a deputada constituinte Lídice da Mata, do PCdoB, o maior mérito da bancada feminina foi ter conseguido aprovar a maior parte das bandeiras que trazia na carta. “Também não aceitamos o estigma e a intenção inicial de nos deixar separadas para aquilo que era considerado tema de mulher, como família, crianças e planejamento familiar. Nós rompemos com isso”, diz a atual senadora pelo PSB, que como deputada na Constituinte apresentou 196 emendas e teve 32 aprovadas. “As integrantes do CNDM nos davam toda a assessoria que precisávamos e que a Câmara não dispunha, porque essa pauta não estava nem na ordem dos fatos, era uma novidade”, explica Ana Maria Rattes, constituinte que mais apresentou e aprovou emendas na Constituição — 468 apresentadas e 120 aprovadas.
A bancada feminina apresentou um total de 3.218 emendas. Uma média de quase 124 emendas por deputada constituinte. A ideia de tornar esse grupo de 26 deputadas em uma bancada de fato, que votaria em conjunto para aprovar as propostas de seus interesses surgiu logo no início da legislatura. “A organização como bancada passou a nos dar um certo escopo dentro da constituição. Foi dessa maneira que a gente conseguiu com mais musculatura e com mais volume tratar as questões que envolviam a vida das mulheres”, constata a deputada constituinte Rose de Freitas, à época do PMDB e hoje senadora pelo Podemos.
Uma das coordenadoras do “lobby do batom” e integrante do CNDM, Maria Aparecida Schumaher acompanhou de perto a mobilização das mulheres dentro do Congresso. Ela afirma que, apesar das dificuldades partidárias, as congressistas aderiram à união em torno da causa feminista, com raras exceções em relação a temas considerados mais polêmicos, como a descriminalização do aborto, que acabou não sendo colocado em votação. “Eu sou testemunha das dificuldades que elas enfrentaram partidariamente”, afirma. “A gente incentivou a coesão da bancada feminina para que as propostas contidas na Carta das Mulheres aos Constituintes pudessem ser abraçadas por todas.”
Deputada constituinte pelo PT, Irma Passoni diz que o diálogo foi de muita maturidade, apesar de algumas mulheres não terem experiência legislativa. “Os demais constituintes compreenderam o momento histórico e acataram as propostas.”
Também faltava, em muitos casos, histórico de engajamento no movimento feminista. “Elas começaram ver uma realidade e uma necessidade de protagonismo das mulheres em aprovar uma carta de independência, de serem sujeitas da própria história”, diz Ana Maria Rattes.