Carol Garcia/GOVBA Major Denice sorrindo com uniforme da polícia

Major Denice e seu jogo contra a violência doméstica

Criadora de ronda para amparar vítimas de agressão na Bahia dá treinamento em outros Estados e presta consultoria na Colômbia e na Índia

No tabuleiro circular, em formato de um espelho de vênus, as casas se alternam em cinco cores, cada uma relacionada a uma forma diferente de violência contra a mulher. A participante lança o dado, anda o número de casas indicadas na pecinha e saca uma carta de cor correspondente àquela na qual o peão parou.

O Jogo Espelho, de dinâmica simples – e até mesmo infantil –, criado pela policial Denice Santiago, fundadora da Ronda Maria da Penha da Polícia Militar da Bahia (PM-BA), é uma das estratégias desenvolvidas por ela para que as mulheres possam se perceber como vítimas de alguma agressão e tomem coragem de procurar a ajuda. “O jogo faz a mulher refletir sobre as violências cotidianas a que nós estamos suscetíveis. Como é isso? Estando no próprio jogo. Mulheres jogando com mulheres”, explica a major.

Criada em 8 de março de 2015, a Ronda Maria da Penha faz visitas-surpresa a mulheres que recorreram à Justiça para manter os agressores a distância. “Antes da ronda, quem ia à delegacia denunciava a violência que sofria, pedia uma medida protetiva de urgência, voltava para casa e não tinha nenhuma segurança do Estado”, diz a major. “Algumas mulheres voltavam a ser agredidas, reatavam a relação por medo ou morriam.” Diariamente, incluindo fins de semana e feriados, uma equipe comandada por Denice se dedica a proteger essas vítimas de violência doméstica.

As regras do jogo

Durante as visitas, as policiais da ronda podem lançar mão do Espelho para ajudar a mulher a localizar a situação em que se encontra. “Por exemplo, na carta vem escrito ‘Todas as vezes em que saio com as minhas amigas, meu marido me pede para enviar uma selfie e a localização’”, detalha. Quando a mulher não reconhece que está em uma situação de violência, recua no jogo. Se perceber, segue adiante. “Em uma das cartas vai estar escrito: ‘Eu vou enviar, porque ele só está preocupado comigo’. Aí a gente fala: ‘Reflita, volte duas casas’. Se ela disser: ‘Eu não vou enviar porque ele sabe exatamente onde eu estou e ele está querendo me controlar’, a gente fala: ‘Muito bem. Avance duas casas.”

Espelho da Violência/Governo da Bahia/DivulgaçãoImagem da tela principal do jogo do espelho
Jogo ajuda mulheres a identificar violência dentro de casa

O jogo de tabuleiro também mostra à vítima que existe uma rede de atenção dedicada a ela. “Em algumas cidades do interior, a mulher não conhece e não sabe como pedir ajuda. Com esse joguinho, ela vai brincando inofensivamente e aprendendo o passo a passo”. A major exemplifica: “Na cartinha vermelha, que está relacionada à violência física, vai aparecer ‘Ele me bateu’. Se ela disser ele tinha razão, eu que fiz a comida sem graça, a gente escreve: ‘Fique uma vez sem jogar e vá ao centro de referência’. Aí ela vai pegar uma cartinha que explica como o centro vai ajudá-la, para construir no imaginário daquela mulher como a rede de atenção funciona.”

Xadrez da violência

Inspirada na Patrulha Maria da Penha do Rio Grande do Sul, a iniciativa baiana acompanha 3.150 casos de agressão feminina e já prendeu mais de 140 homens acusados de crimes contra a mulher na Bahia. “A prisão de um agressor significa um feminicídio a menos”, diz. Em 2018, a major capacitou a Patrulha Maria da Penha de Alagoas, fez consultoria para a Polícia do Maranhão e esteve no Estado do Tocantins e em Osasco, no interior de São Paulo, auxiliando a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) a formar guardas municipais sob os protocolos da guarnição baiana.

“Nós somos hoje referência nacional e eu estou muito envaidecida com isso”, afirma Denice. Consultora de projetos semelhantes à ronda brasileira na Colômbia, Inglaterra e Índia, a major deixa a modéstia de lado quando é convocada a fazer uma autoavaliação: “Eu digo que estou igual à grande filósofa contemporânea Ludmilla: ‘Cheguei chegando bagunçando a zorra toda’”.

De acordo com ela, o trabalho se deve à forma humanitária com que a equipe da ronda se posiciona. O segredo, explica, está no relacionamento. “Não é apenas bater na porta dessa mulher e saber se está tudo bem. É se relacionar e, a partir daí, construir uma nova possibilidade”, explica Denice. “É uma forma que eu acho que é a única possível hoje em dia. É você entender que, enquanto força bélica, você só serve se for para proteger a integridade da pessoa.”

Não é só um agressor

Ainda sob o viés de que o papel da corporação é o de preservar, proteger e educar a ordem pública, em julho de 2015, foi criada a Ronda para Homens, que ganhou prêmio no Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O movimento tem como objetivo sensibilizar e capacitar homens que residem em territórios vulneráveis à violência em Salvador e profissionais de segurança pública, a fim de promover mudanças culturais e reduzir a reincidência entre os autores de violência.

Elói Corrêa/Flickr GOVBAMajor Denice Santiago sorrindo
Comandante da Ronda Maria da Penha Recebe Major Denice Santiago, Comenda na ALBA. (Foto: Elói Corrêa/GOVBA)

“Saímos da atuação do foco na mulher para pensar no papel desse homem, que é agressor, que cometeu um crime e vai ser responsabilizado por isso”, afirma Denice. “Mas ele tem de conversar, aprender e modificar a sua postura. Não se resolve, não se trabalha a violência doméstica somente a partir do lugar da mulher.” Nos encontros, os cabos Djair Moura e Ademilson Cerqueira se reúnem com outros policiais ou com residentes de bairros periféricos, numa espécie de Clube do Bolinha.

A major conta que recebeu relatos de rapazes que achavam que a Lei Maria da Penha só servia como um mecanismo de punição, mas que, após a iniciativa, entenderam que ela também tinha o objetivo de ensinar. “No mínimo, se eles resolverem fazer de novo, vão saber que aquilo (a agressão) que eles estão fazendo tem nome e sobrenome.

A cuidadora

Quem vê Denice “aterrorizando” os bairros por onde passa com a viatura plotada em tons de lilás, cor da luta pela igualdade de gênero, não imagina que a major nunca havia cogitado uma carreira como policial. Desejava ser psicóloga, profissão que nas palavras dela ajuda as pessoas a se conhecerem. “E isso é exatamente o que eu faço na polícia. Talvez por isso que tenha me apaixonado. É a polícia que eu acredito: a que vai ajudar, cuidar, a que vai proteger. Eu não acredito na polícia de combate, de força apenas”, diz. Terceira filha de uma família com cinco irmãos, ela estava concluindo o ensino médio quando o pai, preocupado com a estabilidade econômica da filha, falou sobre o concurso para a PM-BA.

Trabalhou na Companhia de Polícia Militar Feminina por dois anos, entrou para a Academia da PM e fez uma pontinha no Departamento de Trânsito (Detran) durante a gravidez. Em 2006, ano no qual a Lei Maria da Penha passou a vigorar no Brasil, foi uma das fundadoras do Centro Maria Felipa, o primeiro da Bahia a se dedicar exclusivamente a questões relacionadas à violência contra a mulher. Já consolidada na profissão, arrumou uma brechinha para realizar o sonho de infância, tornando-se bacharel e mestre em Psicologia, com a dissertação Branco Correndo é Atleta; Preto Correndo é Ladrão.

Feminista assumida, afirma que o trabalho que realiza na Ronda Maria da Penha é uma maneira de ressaltar que a responsabilidade está em quem escolhe agredir, em quem opta por violentar, e não na mulher que não conseguiu se separar de um marido agressor ou que estava usando uma roupa x quando foi violentada. “Eu quero muito que as minhas irmãs entendam que não vamos ser nós que vamos dar ao machismo mais oxigênio para que esse fogo nos consuma em tal proporção que talvez muitas de nós continuemos a morrer sobre a égide de uma salvação, de uma cura social.”

Referência no Brasil e no mundo como alguém que vai para o enfrentamento da violência contra a mulher, a major ri quando perguntada sobre o seu protagonismo à frente da ronda, atribuindo sua desenvoltura ao mapa astral. “Quando o cara cruzou Áries com Escorpião, ele olhou para mim e disse: ‘Rapaz, nem o diabo pode contigo’. Respondi: E eu quero que ele possa? Quero que ele possa não, deixe ele lá’.”