Após 11 anos sem lançar um álbum de inéditas, Margareth Menezes quebrou o jejum com Autêntica, no qual exalta a figura feminina do início ao fim. As pautas identitárias, marca da cantora e compositora, também estão presentes. “É possível, sim, chegarmos a um lugar de respeito mútuo à mulher, ao negro, ao gay”, diz Margareth. “Acho que o Brasil está muito preconceituoso em relação a isso e atrasado nas relações sociais, na construção da civilidade.”
Precursora do samba reggae desde 1987, quando deu origem ao ritmo no Brasil e no mundo com a gravação de Faraó (Divindade do Egito), o trabalho é uma evolução natural na carreira da artista. Ao longo de 13 composições suas e de Gilberto Gil, Luedji Luna, Carlinhos Brown e Roberto Barreto, do BaianaSystem, ela usa as novas cores do afropop para pintar um retrato contemporâneo da Bahia e do Brasil.
Seguindo seus instintos e suas referências, Margareth consegue se reinventar. “A liberdade de criar é bacana, é uma referência para mim”, afirma. “A beleza da vida é essa: fazer o teu e, quem gostar, vai seguir.”
Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista:
O mercado e a indústria musical mudaram muito desde que gravou seu último disco, há 11 anos. O que mudou, na sua visão como artista, na hora de criar esse disco?
A logística. Acho muito interessante, porque hoje você tem mais independência. Quanto à questão da pesquisa sobre sonoridade e a identidade do disco, se você pegar meus discos anteriores vai notar que eles sempre tiveram a questão (do movimento) afropop muito forte. Em Autêntica, eu mostro uma cantora já com certa maturidade, dentro daquilo que ela sempre se propôs. Nesse tempo, vim aprendendo essa maneira nova de lidar com a comunicação e as plataformas digitais. Como não precisar necessariamente lançar um disco inteiro. Então, fiz EPs, lyrics e vídeos. Mas agora foi o momento de lançar esse projeto. Para pensar em um disco completo você precisa criar uma temática, que agora é justamente a questão da mulher. Isso foi possível porque nós fomos selecionados pelo Natura Musical, um projeto muito empolgante que me proporcionou fazer uma coisa nova e maior.
O disco desdobra a questão da mulher em vários pontos, como a maternidade da mulher negra, citada pelo menos em duas músicas (Minha Mãe, Minha Diva e Mãe Preta). Como é a relação com a sua mãe e por que quis fazer esse recorte?
Nesse momento atual, temos a oportunidade de falar mais sobre assuntos necessários, como o racismo, a representatividade e o nosso lugar na sociedade como um todo. Ao mesmo tempo, estou falando da minha mãe, que se chamava Diva, prestando também um tributo a ela e à nossa descendência de índios e negros. Também quis aproveitar e agradecer às minhas mães ancestrais, que com sua força e sua fé conseguiram superar todos os maltratos que a escravidão trouxe. Porque foi preciso alguém morrer para nós sobrevivermos. Em cada lugar, o sagrado chega de um jeito diferente. Então, nessas músicas, eu também falo sobre o lado positivo dos orixás e das religiões de matriz africana.
A música A Mulher da Minha Vida também fala de maneira muito forte sobre o feminino, abordando o empoderamento de forma atual. O que chamou a atenção nessa letra e por que quis gravá-la?
Essa música é de dois compositores do Rio de Janeiro, André Lima e Gabriel Moura. Eles souberam que eu estava gravando e me procuraram. Eu disse o que estava sentindo. Achei que a canção tinha tudo a ver com o que eu queria falar, mesmo sendo escrita por dois homens. Para mim, ficou muito interessante porque os homens normalmente não sabem do que estamos falando, né? Mas, graças a Deus, ainda existem os que respeitam as mulheres e acabam se aliando às nossas ideias. Se viajarmos para outros lugares do mundo, é possível ver que nem todo lugar tem tanta violência. É possível, sim, chegarmos a um lugar de respeito mútuo à mulher, ao negro, ao gay… Acho que o Brasil está muito preconceituoso em relação a isso e atrasado nas relações sociais, na construção da civilidade. Precisamos evoluir desse lugar.
A essência do axé está ligada à mistura do samba-reggae de ritmos africanos com brasileiros. Esse sincretismo sempre esteve em suas músicas, como Elegibô e Ifá, um Canto pra Subir. Hoje é mais fácil ou difícil cantar sobre esses temas?
A Bahia sempre foi pioneira em vários temas de expressão da música popular brasileira. Trazer para esse ambiente as nossas referências de outras religiões faz parte natural do povo. E não só dos baianos, mas de outros Estados que também fazem esse cruzamento da religiosidade expressada na cultura popular. Essa ligação com as representações afrobrasileiras vem através do povo, porque é uma expressão popular, desde Clementina de Jesus, Jovelina Pérola Negra, Clara Nunes e várias cantoras ancestrais e negras que vinham trabalhando nisso. A música que eu canto tem essa questão pela minha personalidade e também por ser urbana.
Neste trabalho, estão presentes jovens artistas da Bahia, como Roberto Barreto, do BaianaSystem, Larissa Luz e Luedji Luna. O que chama a atenção na nova onda de talentos baianos?
Eles têm muita irreverência, né? Algo que eu gosto e com o que me identifico. Essa pluralidade faz a gente sair daquela caixinha de que precisamos ser só de um jeito ou de outro. A liberdade de criar é bacana, é uma referência para mim. A beleza da vida é essa, fazer o teu e, quem gostar, vai seguir.
Falando em seguir e ser autêntica, Faraó (Divindade do Egito) se tornou um sinônimo do carnaval no Brasil. Ela foi gravada há 32 anos. Imaginava que a música faria tanto sucesso?
Essa é uma música antológica, que divide águas na música popular brasileira. Foi o primeira samba-reggae gravado no Brasil e no mundo, e tem um poder de comunicação imenso. O refrão balança as pessoas, parece que vem de um inconsciente coletivo. Realmente, é impressionante. Ela fala dessa história do Egito negro, com um legado riquíssimo de tecnologia e construção, como um grito de liberdade. Eu acho que a gente vai morrer e a música vai ficar.