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Visual ‘tomboy’ de Arya reflete alma guerreira e vontade de ser ‘ninguém’, enquanto Daenerys tem look camaleônico

‘GoT’ de Arya a Daenerys: figurinos mostram evolução de personagens femininos

A convite do 'Estado', historiador de moda italiano aponta as principais referências usadas para construir, por meio do look, a história das mulheres na série

Entre congelados, incinerados e feridos, a oitava e última temporada de Game of Thrones tem se mostrado um dos maiores eventos televisivos da década, com orçamentos milionários por episódio e uma produção que, se não fosse por um copo de Starbucks aqui e a falta de uma mão dourada ali, beira a perfeição. Parte de todo esse aparato, o figurino desenvolvido por Michele Clapton tem sido um show à parte, desempenhando papel narrativo quase tão forte (e às vezes mais crível, diga-se de passagem) quanto os diálogos.

Dos casacos de pele usados por Sansa (Sophie Turner) aos longos vestidos de Cersei (Lena Headey), Michele conseguiu traduzir nas roupas não só a personalidade e o caráter dos personagens, mas também a evolução de seus arcos narrativos. “Cada detalhe ali é cuidadosamente pensado. As correntes, por exemplo, servem para nos lembrar que elas não são apenas mulheres, mas também guerreiras”, explica o figurinista e historiador de moda italiano Luca Costigliolo.

Co-autor de Women’s Dress Patterns e Patterns of Fashion 5, Luca observa que, para cada personagem feminina da história criada por George R. R. Martin, o figurino traduz elementos psicológicos e até paralelos narrativos na trama. “Cersei e Sansa são como espelhos uma da outra, por exemplo, com vários aspectos similares. Ambas são fortes, mas com forças distintas.”

A pedido do Estadão, Luca analisou a evolução dos figurinos de Cersei Lannister, Daenerys Targaryen e Arya e Sansa Stark. Confira:

Cersei Lannister, uma rainha clássica

HBO/DivulgaçãoCersei usa vestido bordô com manga bordada em dourado
Figurino de Cersei mescla referências de rainhas medievais com peças orientais: origem nobre está clara

Uma das vilãs mais odiadas da série, Cersei nasceu em berço de ouro e, desde o início de GoT, faz questão de deixar isso claro. “Basicamente, ela se veste como uma princesa do período medieval, com duas referências distintas. A principal é a idealização da rainha medieval criada no século 19 através de pinturas”, explica Luca.

Outro elemento que entra nessa composição é a moda oriental. A forma como os vestidos são dobrados lembra um quimono e os cintos metálicos funcionam como obis, as amarrações japonesas. Para além das silhuetas, a paleta de cores escolhida para a personagem indica como ela foi de herdeira poderosa a uma rainha em guerra pelo trono.

“Existe um elemento psicológico muito forte na criação de Michele Clapton”, aponta Luca. “Cersei começa a série com uma paleta de cores bem feminina e diversificada, com bastante azul e vermelho, mas existe uma mudança repentina quando a história passa a se desenvolver de forma mais brutal.”

Saem as cores e entram os tons escuros com elementos metálicos, como as ombreiras inspiradas nos pouldrons, o ombro de metal presente nas armaduras masculinas desde o século 15. Já nas temporadas finais, o uso de correntes aparece para fortalecer a personagem. “A figurinista gosta muito de brincar com a estrutura dos ombros, o que é um artifício recorrente na história da moda para transformar a silhueta das mulheres em algo mais forte, com inspiração militar”, observa Luca.

HBO/DivulgaçãoRainha vestida para a guerra, com cabelos curtos
Pronta para a guerra: correntes, paleta de tons escuros e ombros acentuados traduzem força e militarismo da personagem

O especialista em moda também aponta para a presença do bordado em alguns vestidos: “É uma tradição clássica da Europa, em que era possível reconhecer as famílias mais nobres apenas pelos elementos bordados em suas roupas.” Há, ainda, uma escolha tática dos acessórios, segundo ele. “Um aspecto interessante da Cersei é que, quanto mais vulnerável ela está, mais jóias usa. Assim, ela lembra a todos que ainda é da realeza, mesmo que esteja momentaneamente enfraquecida.”

Daenerys Targaryen e a silhueta da década de 1940

Com um dos arcos mais disruptivos e surpreendentes de GoT, Daenerys foi de escrava vestida com farrapos em Essos a uma rainha gladiadora e implacável em Westeros, pronta para montar seu dragão e destruir cidades com fogo e sangue. E, a cada país que a Targaryen passava, seu figurino se transformava.

“Nas primeiras vezes que ela aparece, nós a vemos com couro e roupas étnicas, nada que remeta à nobreza. Quando ela surge nos países de clima quente (Qarth), está usando tecidos leves e vestidos inspirados nos gregos antigos, mas em uma releitura moderna”, explica Luca.

Quando Daenerys chega a Astapor para libertar o exército dos Imaculados, há uma mudança drástica nas cores, na estrutura do figurino e em uma peça fundamental. A roupa marca que ela está, pela primeira vez, em posição real de combate.

HBO/DivulgaçãoDaenerys está ladeada por seus companheiros e vestida para a guerra, com calças e blusa com ombreirasF
Ao conferir calças à personagem, figurinista deixa claro que Daenerys está assumindo papel de liderança nas batalhas

“Ela usa bastante azul e tons terrosos, como faziam os povos bárbaros do Marrocos. O personagem adquire mais força quando a figurinista veste Daenerys com calças pela primeira vez, adicionando elementos tradicionalmente masculinos”, explica o consultor. “Quando paramos para pensar, por baixo de todas essas túnicas e vestidos, ela está usando calças, o que realmente a transforma em uma guerreira.”

Como Luca aponta, há um determinado ponto de GoT em que todos os personagens começam a usar preto, preparando-se para o inverno e para a guerra com o Rei da Noite, que finalmente ultrapassa a muralha. Com Daenerys não é diferente.

“Ela volta à referência medieval na estrutura das roupas, mas não da mesma forma que a Cersei, e sim com uma inspiração mais moderna. Roupas escuras, de couro preto e ombros brancos, que mostram o seu poder e o seu preparo militar”, explica o historiador. “Daenerys nunca usa jóias, mas sim uma corrente, que é uma reinterpretação do cinturão militar que surgiu na Renascença e existe até hoje.”

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Cintura marcada e ombros acentuados remetem aos ternos femininos e corrente é uma reinterpretação do cinturão militar

A chegada do inverno traz consigo os casacos de pele, que Luca considera “incríveis”, por remeterem a um período importante da história da moda para o empoderamento feminino. “Eles lembram os ternos que as mulheres usavam em 1940, com ombreiras bem largas e marcadas. A silhueta básica é uma cintura fina com ombros largos, porque eles eram usados para fazer com que as mulheres aparentassem mais força e austeridade”, relembra.

Na época, o look foi criado para que a atriz Joan Crawford pudesse disfarçar sua cintura nem tão fina assim – o que era uma exigência para os estúdios de Hollywood -, mas acabou por conferir austeridade às mulheres, em meio à Segunda Guerra Mundial. Como o figurinista explica: “A maioria das mulheres precisou literalmente assumir o papel de seus maridos no trabalho, já que eles foram lutar”.

Sansa Stark, uma caçadora na corte

Além de compartilharem a aptidão estratégica na história de George R. R. Martin, Sansa e Cersei parecem dividir gosto similar pelo vestuário. “Em termos de figurino, elas funcionam quase que como o espelho uma da outra. Quando Sansa vai para a corte e precisa se vestir de acordo com o ambiente, ela praticamente se torna uma nova versão de Cersei”, afirma Luca.

As semelhanças vão desde o estilo medieval na estrutura dos vestidos e, no caso da Dama de Winterfell, a feminilidade que ela mostra quando chega a Porto Real e precisa lidar com a nobreza da capital. Mas são as diferenças que mostram a verdadeira relação de poder entre elas.

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Cersei suave: apesar da semelhança na estrutura medieval dos vestidos, Sansa começa com visual mais frágil do que o da rainha

“Ainda que Sansa use as mesmas roupas, com essa inspiração entre o medieval e o oriental, os tons pasteis no figurino indicam que ela é mais fraca, pelo menos no início”, observa Luca, notando que o ponto-chave de mudança para a personagem foi seu casamento com Ramsay Bolton (Iwan Rheon), na 5ª temporada. “A partir daí, suas roupas começam a passar um ar mais forte, com tons fechados e escala de cinza.”

O crescimento do “pequeno pássaro” extrapola a paleta de cores e é incorporado em acessórios que seguem a personagem até o episódio final, como os cintos inspirados nos obis. Mas enquanto a Cersei os usa em metal, Sansa tem uma versão em couro – o que é justificável pela sua origem no norte.

“Isso a torna tão forte quanto a Cersei, mas com um tipo diferente de força. É uma declaração muito importante que o figurino faz nesse momento”, diz Luca. E, assim como Daenerys, Sansa também passa a acentuar o padrão dos ombros em seus vestidos, imprimindo um aspecto militar que se torna a base para o vestuário da personagem.

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Pele sobre os ombros e a inseparável corrente no pescoço são sinais de que Sansa está forte e preparada para lutar

“Ela sempre carrega essa corrente no pescoço, porque é um elemento que simboliza força e faz referência a uma armadura. Ele está ali para nos lembrar que essas mulheres não são apenas mulheres, elas são guerreiras. Aquilo não é um simples diamante”, pontua o historiador, que ainda realça a importância dos casacos de pele para Sansa. “Isso passa imediatamente a impressão de uma caçadora exibindo a sua presa, um hábito comum entre os vikings. Ela basicamente carrega um lobo nos ombros.”

Arya Stark e as roupas de “ninguém”

Subvertendo o que se espera de uma mulher desde o primeiro episódio de GoT, Arya Stark transparece sua não-conformidade com a performance do gênero feminino em todos os aspectos de seu figurino. “Ela é meio que a tomboy de toda a série, e está sempre vestida quase como um homem”, observa Luca.

Seu guarda-roupa, como aponta o figurinista, é uma mistura de estilos, todos com referências masculinas: o vestiário dos homens na Renascença, as saias de um samurai japonês e até a jaqueta de couro, por exemplo, que é chamada doublet por ser mais curta e justa no corpo, similar ao gibão, sua versão da Espanha. “É importante notar que ela está sempre vestida de algum tecido ou de couro, mas, ao contrário dos outros personagens, sua roupa não é costurada e, sim, amarrada uma na outra. Como precisa lutar, faz isso para conseguir tirá-las de maneira mais rápida.”

HBO/DivulgaçãoArya veste roupa no estilo militar
Guarda-roupa de Arya é formado por miscelânea de referências masculinas que vão do renascentismo europeu aos samurais

Enquanto as personagens descritas acima sempre trazem consigo elementos que remetem à guerra, à nobreza ou à força, Luca afirma que o traço principal do figurino de Arya é a simplicidade e a praticidade. Isso aparece, por exemplo, na forma como ela usa as capas, deixando sempre um lado do corpo livre e pronto para sacar sua espada. “É um truque da moda que a fortalece como lutadora, para que as roupas não interfiram nas suas disputas. É por isso que, ao longo da série, ela é a que menos muda de estilos.”

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Ausência de acessórios, adornos ou detalhes no figurino de Arya mostra como a personagem busca por praticidade e anonimato

E, como “a garota é ninguém”, seu figurino, claro, não poderia ser diferente. “Ela parece uma personagem que está sempre escondendo quem realmente é, além de ser uma das poucas que aparecem com roupas escuras desde o início. Ela não se exibe ou carrega marcas como Cersei e Arya porque não quer que as pessoas saibam quem ela é e o que está fazendo ou procurando ali.”