Rayssa Motta

Maternidade positiva: a solidão das gestantes com HIV

Em dez anos, diagnósticos da doença entre mulheres grávidas aumentaram 21,7%, segundo Ministério da Saúde

Aline foi a todas as consultas do pré-natal sozinha. Grávida de oito meses do primeiro filho, a balconista desenvolveu estratégias próprias para passar pelos atendimentos desacompanhada. Como muitas outras gestantes atendidas no Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (HUGG), na zona norte do Rio, ela é portadora de HIV e não compartilha a condição com a família. “Hoje, eu vim com uma tia, mas falei que tinha muita gente na sala de espera e deixei ela sentadinha lá fora”, contou à reportagem.

A gestação tornou mais difícil esconder a soropositividade. O primeiro passo foi procurar acompanhamento longe de casa – ela percorre um trajeto de cerca de uma hora da Baixada Fluminense até o hospital. Para isso, precisou driblar o Sistema de Regulação de Vagas (Sisreg), que estrutura a fila da Saúde. Hoje, um dos critérios usados para definir o posto de atendimento durante o pré-natal é a proximidade entre o local onde as pacientes moram e as UBS (Unidades Básicas de Saúde), o que aumenta a chance de exposição em suas comunidades. “Imagina a nossa cabeça sabendo que vamos entrar numa sala e encontrar uma auxiliar de enfermagem que é nossa vizinha?”, questiona.

Após a indicação de um infectologista, ela conseguiu uma vaga no Gaffrée. O hospital-escola da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) foi pioneiro nas cesarianas em portadoras de HIV. Lá, uma equipe multidisciplinar composta por obstetra, infectologista, enfermeira, nutricionista, psicóloga e assistente social acompanha as pacientes. O perfil mais comum é de jovens com idade entre 25 e 35 anos, com baixa renda e escolaridade.

Além das consultas, semanalmente elas se reúnem em rodas de conversa para receber orientações e trocar experiências. A proposta dos encontros é oferecer um ambiente de escuta que ajude as pacientes a formar uma rede de apoio para enfrentar a doença e lidar com a maternidade. Normalmente, suas angústias estão relacionadas ao medo de contaminação do bebê, à chance de pessoas próximas descobrirem a condição soropositiva durante a gestação e à restrição à amamentação.

Os atendimentos mais complexos, segundo a psicóloga Cristina Pires, envolvem pacientes que recebem o diagnóstico da doença na gravidez. Desde 2012, quando o Ministério da Saúde instituiu o teste rápido de HIV na Rede Cegonha, uma parcela considerável das identificações de casos de infecção retroviral em mulheres passou a ocorrer durante o período gestacional.

Em um intervalo de dez anos, houve um aumento de 21,7% na taxa de detecção de HIV em gestantes: em 2007, a taxa era de 2,3 casos/mil nascidos vivos e, em 2017, passou para 2,8/mil nascidos vivos, conforme o Boletim epidemiológico HIV/Aids 2018, do Ministério da Saúde.

“Se a gravidez já é, na maioria das vezes, uma questão complicada, tendo em vista a situação socioeconômica vulnerável que muitas dessas mulheres vivem, a gestação somada à notícia do vírus é causa de muita desorientação e confusão mental”, explica Cristina. “A partir do momento que tomam conhecimento de sua condição de grávidas soropositivas, elas precisam do suporte da família, que nem sempre vão ter, por escolherem não se expor. A verdade é que o estigma e a questão moral do vírus ainda estão muito presentes e muitas escolhem não falar”.

Foi o caso de Luana. Depois de passar dez anos testando diferentes tratamentos de fertilidade, ela recebeu a notícia da gravidez junto ao diagnóstico da doença. “Meu maior sonho era ser mãe e quando engravidei não pude amamentar”, lamenta. Segundo o Ministério da Saúde, o aleitamento está associado a um risco adicional de 7 a 22% de transmissão do vírus ao bebê. Por isso, as portadoras precisam tomar remédios para inibir a produção de leite. Primeiro, Luana iniciou o pré-natal em um consultório particular. “Quando falei que era HIV, só faltou o médico me chutar pela porta”, desabafa. Após a reação, decidiu confidenciar o diagnóstico apenas à mãe. Para o companheiro, que não é o pai da criança, ainda não contou. Como os dois moram juntos, as medicações para controlar a carga viral ficam escondidas em potes de vitaminas. “Eu me sinto mal, porque eu poderia dizer a verdade, mas ainda me falta coragem. Eu quero, aos poucos, abrir a cabeça dele para ele enxergar que o HIV não mata”, confessa.

Leila também recebeu o diagnóstico na gestação, quando estava grávida de cinco meses do terceiro filho. Ela conta que contraiu a doença do marido, com quem é casada há dois anos. “É bem complicado pra mim. Todo dia quando eu tomo o remédio eu me pergunto o porquê, às vezes até culpo ele, choro na frente dele”, relata.

A médica Regina Rocco, chefe do setor de obstetrícia do HUGG e pesquisadora da doença há 30 anos, conta que casos como o de Leila são os mais comuns entre as pacientes. Isso porque a bissexualidade embutida na identidade heterossexual do homem faz com que as mulheres monogâmicas sejam incluídas como vítimas no ciclo de transmissão da doença. “Há um impacto quando essas mulheres descobrem que contraíram HIV de seus maridos e que provavelmente foram trocadas, sexualmente falando, por um homem, já que seus companheiros nunca assumiram a bissexualidade a elas”, avalia.

No caso das gestantes, há ainda a complicação do pré-natal de risco, conforme classificação da OMS (Organização Mundial da Saúde). Regina explica que o medo da transmissão do vírus ao bebê acaba dinamitando a relação que normalmente é criada com o filho ainda na barriga. “Não é dada a elas a mesma felicidade de gestar. O binômio morte/vida coexiste permanentemente em suas cabeças.”