A nécessaire com rímel, base, pó, batom e blush já fica dentro do carro de Lilian Brandão Machado Doern, que leva até spray de xampu a seco, tudo para ganhar mais 20 minutos de sono. De quebra, ela ainda ocupa o tempo que passa no trânsito, que não raramente passa de uma hora, para estudar e escutar audiolivros. “Lógico que prefiro me maquiar em casa, mas muitas vezes eu acordo muito cedo e saio correndo.”
Os paulistanos gastam em média duas horas de deslocamento de casa até sua atividade principal, como trabalho ou estudo, segundo a pesquisa de 2018 Viver em São Paulo, da Rede Nossa São Paulo e Mob Cidades, em parceria com Ibope Inteligência. O estudo mostra ainda que o ônibus é o meio de transporte mais utilizado, seguido por carro e metrô.
A designer gráfica Stella Bonici, de 23 anos, pega ônibus e trem de sua casa em São Caetano do Sul, na região metropolitana de São Paulo, para seu trabalho em Moema, bairro da zona sul da capital, um trajeto que dura 1h15. Além disso, três vezes na semana ela faz curso de especialização em design gráfico na Vila Madalena, na zona oeste, o que significa usar mais um meio de transporte.
Para preencher o tempo de deslocamento, Stella começou a se maquiar e até a retocar o esmalte no ônibus e no metrô, mesmo quando não consegue um assento vazio. Ela conta que, se tivesse cabelo mais longo, também arrumaria no ônibus. Segundo ela, se não demorasse tanto até o trabalho, deixaria para se maquiar quando chegasse lá e usaria o tempo extra para dormir.
De acordo com José Hercilio Pessoa de Oliveira, da Fundação Getulio Vargas (FGV), que pesquisa os desafios para a mobilidade das mulheres da zona sul de São Paulo, o transporte urbano não foi planejado para as passageiras, já que não leva em conta as múltiplas tarefas que desempenham, e isso pode afetá-las nos estudos e trabalho. Para ele, uma mobilidade pensada para elas, por exemplo, seria um ônibus com hastes mais baixas, de acordo com a altura média da brasileira, que é menor do que a média de altura dos homens. “As mulheres carregam sacolas, crianças, auxiliam idosos, entre outras coisas”, afirma. “A mobilidade urbana é pensada de forma homogênea.”
Trajetos com mais paradas
Culturalmente, as mulheres ficam com as tarefas que envolvem o cuidado: da casa, dos filhos, do marido. Com isso, acabam tendo jornadas de transporte menos lineares do que os homens, que fazem trajetos mais longos e duradouros, enquanto elas fazem mais paradas. “As mulheres são prejudicadas em relação a tempo e trabalho. Na tarefa de fazer múltiplas coisas durante o dia, elas precisam de muito mais tempo do que as poucas tarefas que os homens fazem”, diz o pesquisador da FGV.
Os 30 minutos que Mariana Lopes de Assis, de 28, economiza todos os dias se maquiando no trem é um tempo que pode usar para dormir e arrumar a filha com calma pela manhã, antes de levá-la para a escola. Funcionária de Recursos Humanos, Mariana mora em Carapicuíba, na região metropolitana de São Paulo, e trabalha em Alphaville, entre os municípios de Barueri e Santana de Parnaíba, no Estado de São Paulo. Ela passa 1h10 no ônibus, mas quando precisa visitar um cliente novo, a rotina muda.
Mariana explica que sua última opção é fazer a maquiagem em casa. E até garante que a luz das janelas do trem é ideal para fazer a sua marca registrada: um delineado. “Eu só me maquio em casa para ir em uma festa”, conta. “Eu sempre erro com a luz do meu banheiro.”
Segundo a professora de Economia e pesquisadora do Insper Regina Madalozzo, na maioria das vezes a tarefa do cuidado da família recai sobre a mulher, o que faz com que tenham horários mais restritos do que os homens. “As mulheres precisam de uma flexibilidade maior de locomoção, mas isso não é possível em uma cidade como São Paulo, em que você pode levar de duas a três horas para chegar ao trabalho”, afirma. Ela acrescenta que, para se locomover na cidade, as mulheres precisam deixar de realizar algumas tarefas por falta de tempo. “Você tem de contratar alguém para olhar a criança e o idoso, ou não consegue aceitar um emprego que pagaria mais porque tem de ficar mais horas.”
Por mais que Lilian tenha uma rotina mais flexível como professora de ioga e zumba, ela ainda precisa se deslocar até os alunos e conciliar o tempo com as aulas em grupo em uma academia em Campo Belo, na zona sul da capital. Ela é a responsável por levar o filho de 18 anos para a escola e eventualmente acompanha o marido em consultas médicas. “Os compromissos exclusivos da mulher, como trabalho, estudos e cuidados consigo própria, acabam tendo de se encaixar com os outros, num complexo quebra-cabeças”, explica Haydée Svab, pesquisadora e consultora em mobilidade urbana.
Lilian tem o hábito de se maquiar dentro do carro desde que era solteira e ia para uma festa e depois quando trabalhava como advogada e sentia que o ambiente de escritório exigia que estivesse mais arrumada. Após o nascimento dos filhos, com a rotina mais atribulada, ela passou a usar apenas batom e logo começou a praticar ioga e decidiu virar professora. “Foi legal porque dava para conciliar bastante os horários com os filhos e a profissão.”
Mercado de trabalho
A pesquisa Como Famílias de Baixa Renda em São Paulo Conciliam Trabalho e Família?, da professora do Insper, mostra que a taxa de emprego é menor para uma mãe solteira (60%) e para uma mãe casada (47,3%), enquanto a do pai casado é de 90%. “O empregador discrimina as mães sempre acreditando que ela vai se ausentar mais no trabalho por causa da jornada dupla”, conta. “A jornada dupla não implica que a mulher se dedique menos ao mercado de trabalho, é uma crença incorreta.”
Regina diz que, independentemente da classe social, as mulheres partilham a responsabilidade de cuidar dos filhos com outras mulheres, seja babá, empregada doméstica ou filha mais velha, mãe e vizinha. Para Mariana, o trajeto consiste sempre em passar na casa de sua mãe para deixar a filha antes de pegar o ônibus tanto na ida quanto na volta do trabalho. “A responsabilidade de levá-la e buscá-la é minha”, afirma. “O meu marido chega mais cedo, de condução, e já adianta o jantar, porque é ele que cozinha em casa.”
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) de 2018, taxa de realização de afazeres domésticos das mulheres (92,2%) continua bem superior à dos homens (78,2%). Mas essa diferença, hoje de 14 pontos porcentuais, era maior em 2016 (17,9 pontos porcentuais) e em 2017 (15,3 pontos porcentuais).
Para a economista do Insper, Regina, o que as mulheres procuram é mais tempo para elas mesmas, com atividades que normalmente envolvem cuidados estéticos, como maquiagem, cabelo e unha. Mesmo que isso signifique realizar algumas delas no trajeto.
* Atualizada em 8 de maio com dados atualizados sobre realização de afazeres domésticos