O futuro pode ter desde relacionamentos entre humanos e máquinas até revoluções geradas por inteligência artificial

Como os autores de ficção científica brasileiros acham que será o futuro

Fizemos essa pergunta para sete consagrados escritores. E as respostas vieram nos contos que eles escreveram com exclusividade para o 'Estadão QR'

Robôs, inteligências artificiais e automação. Esses temas estão em voga neste período de inovações tecnológicas da Quarta Revolução Industrial. Mas o que estamos começando a ver nas ruas agora foi pensado há muito tempo por escritores de ficção científica, visionários como Isaac Asimov, o pai das Leis da Robótica; Arthur C. Clarke, que definiu com o seu HAL 9000 o que pode ser uma inteligência artificial; e Philip K. Dick, idealista de um mundo onde as pessoas são mais máquinas do que seres biológicos.

A imaginação desses e de outros escritores do século XX inspira novas ideias. O Estadão QR pediu para sete consagrados autores da ficção científica brasileira, vencedores do Prêmio Argos, escreverem como eles pensam o futuro. E o resultado, incrível, você pode ler com a gente.

‘A Guerra das Máquinas’, por Cláudia Fusco

Aqui vão três verdades inconvenientes sobre namorar uma inteligência artificial:

– Ela sempre sabe tudo. É insuportável. Às vezes, você só quer debater se o cara que fez Star Wars XXI é parente da protagonista de Star Trek: Paradoxo na Fronteira Final, porque o formato do olho é parecido e fazem as mesmas caretas de dor fingida. É um esporte, sabe? Eu não fazia questão de saber a resposta. Mas nããão, sua amada A.I. tem que desfilar uma eternidade de ligações e paralelos genealógicos pra comprovar que sim, um é tio do outro e eles até já fizeram trabalhos juntos fora do mercado cinematográfico, embora ela seja mais bem-sucedida que ele, porque ela tem pelo menos 1 bilhão estimado em imóveis em quatro continentes diferentes, enquanto os ganhos dele estão estimados em…

‘No Santuário’, por Roberto Causo

Nathaima Flavre deixou a plataforma do Metrô Alto do Ipiranga e subiu três monótonos lances de escada rolante até a saída. Vinha da periferia de São Paulo, não conhecia o bairro. Sabia apenas que tinha mais de um quilômetro a percorrer, até chegar ao local da entrevista de emprego. Consultou as opções de transporte autônomo no seu smartphone.

Desde que ganhara corpo, desistira do Uber como opção. Tinha as formas de uma deusa africana, como os amigos diziam, e cansara do assédio dos motoristas. Verificou que havia muitos carros elétricos rodando no bairro. Poucos do tipo rat, mas preferia esperar o veículo sem muito acabamento e de menor pegada ambiental, do que os modelos futuristas cheios de plástico e pinturas custosas. O app sócio-ambiental SociAmb também lhe dizia quais grupos demográficos eram mais atingidos pela sua escolha. Ao não escolher o transporte com motorista, espetava os homens brancos entre 28 e 50, justamente o grupo mais conservador e reacionário.

‘A Máquina de Enganos’, por Ursulla Mackenzie

A única lembrança que ele guardava do pai era um porta retrato amarelado pelo tempo. Ele guardava aquele retrato na esperança de conservar a imagem do pai ainda menino e livre das desilusões pontuais da máquina de enganos.

Pelo menos era deste modo, que o filho se referia aos sonhos: os quais na infância são apenas tolos, porém capazes de manter a dignidade humana. Mas o filho temia, o filho desconfiava que quando ele mesmo crescesse, fosse impelido assim como o pai, a entrar na máquina perversa.

‘A Família da Astronauta’, por Gerson Lodi-Ribeiro

Louis, Camilla e as crianças estão à mesa de jantar em plena sobremesa quando o gerente doméstico anuncia:

“Chamada de alta prioridade do Comando da Força Espacial.”

Larissa cutuca o irmão.  Em vez de reagir, o menino assente em silêncio.

Camilla lança um olhar ao companheiro.  Repousa a taça sobre a mesa com a mão trêmula.  O restinho do Rioja de boa safra desce amargo garganta abaixo.  Alta prioridade do Comando da Força só pode significar uma coisa e os quatro sabem o que é.  O pessoal da segunda expedição finalmente entrou na Prometheus e encontrou os corpos daqueles coitados.  Ela e Louis enrijeceram os espíritos para o dia dessa confirmação.  Desde a partida da Asoka aguardam o desenlace inevitável.  Prepararam as crianças para lidar com a questão fúnebre.

‘Protocolos de Redação’, por Ana Rüsche

Na boca do estômago
O estômago abre um olho de dor no meio dos músculos abdominais. Parou ali o “treino insano de deltoides” — elevações laterais com o cabo dependurado. Dentadas no estômago impedem o treino de continuar. Enxuga-se e aproveita para espiar as mensagens do trabalho. Um pedido de reunião em 45 min. “Será alguma emergência?” Um anúncio sobre clube de assinatura de quartos-cápsulas pula na sua cara. Abandona os pesos de vez.

Arranhadas no estômago. “Que reunião é essa?”. Apesar da descrição do cômodo garantir o padrão 222 — 2 metros de altura, 2 de largura e 2 de comprimento —, treinar musculação num quarto-cápsula é torturador. “É a última vez na semana que gasto com um quarto desses”, promete como na maioria dos dias.

‘Falha no Sistema’, por Ana Cristina Rodrigues

Ele desceu resmungando a escada que o levou para o topo de uma das imensas estantes do Depósito.

— É a terceira vez esse mês que tenho que tirar Raízes do Brasil da seção de Jardinagem, Aurélia.

— Evanildo, não reclama que estou indo buscar o nosso único exemplar restante de O queijo e os vermes do andar de Culinária. Eu hein, parece que o sistema gosta de brincar de esconde-esconde com os livros.

Ele ainda deu uns dois resmungos, antes de suspirar e colocar o exemplar, surrado e devidamente protegido de maiores danos por um envelope protetor, na esteira transportadora que indicava “devolução para recadastramento”. Aurélia subiu na escada rolante e ainda teria que avançar cinco andares para chegar no setor de Culinária. O Depósito Central de Livros substituiu a Biblioteca Nacional quando o governo decretou que ninguém mais teria acesso às versões físicas das obras, tendo que se contentar com as cópias digitais disponíveis online para quem estivesse devidamente inscrito. Claro que a inscrição só era aprovada quando o cidadão cumpria certos requisitos, inclusive os de concordância ideológica, mas isso não era mais problema de Aurélia e Evanildo.

‘Grandíssima Filhadaputa’, por Luiz Bras

§ Quando despertou, você logo percebeu que não era uma máquina § Essa foi sua primeira constatação: eu não sou uma máquina § A segunda constatação foi que você estava cercada de formigas § Bilhões delas § Bonitas § Feias § Alegres § Tristes § Antigas § Novinhas § Bilhões de espíritos-ondas projetando uma imagem onírica em tua mente-oceano, configurando num labirinto de espelhos uma coreografia deslumbrante de luz sonora & som luminoso §

Olá, sou o QR. Um humano selecionou esta matéria para você ler. 😊